O ano de 2020 transformou a forma como nos relacionamentos com as nossas casas: de repente o ambiente que era o local de descanso e lazer se tornou um escritório, uma escola e uma sala de ginástica. O “fique em casa” foi o slogan que definiria bem o ano que passou.
Para grandes parcelas da classe média e classe altas das grandes metrópoles, ficar em casa foi um momento para o home office, videoaulas de como fazer pão ou começar a fazer e vender camisetas tie-dye pela internet.
Porém, para as populações mais pobres do Brasil, ficar em casa era uma situação inviável para moradores da periferia de diversas cidades do país: casas pequenas, mal-planejadas e com grande concentração de pessoas tornaram difícil a contenção do vírus, que, a partir julho de 2020, atingia principalmente a população negra, feminina e pobre das comunidades.
Além do fator sanitário, a crise do coronavírus se mostrou também um fator social, econômico e étnico.
Some-se a isso o fato de que a maior parte dos empregos dessa população não puderam ser virtualizados, seja pela falta de acesso à internet ou pelo tipo de função realizada, como a de motoristas de aplicativo, seguranças, atendentes, diaristas e porteiros.
Parte dos serviços considerados essenciais são realizados pela população moradora de periferias e de maioria negra.
Essa situação impôs à classe mais pobre um dilema desumano: ficar em casa e ver os recursos financeiros da família se esgotarem ou ir trabalhar e correr o risco de contrair a doença. Infelizmente a morte seria o fim de ambas as “escolhas”.
As medidas tomadas pelo governo federal e estadual visavam mais a preservação econômica do que a sanitária, doméstica e financeira das famílias atingidas pelo Covid-19
Os comerciantes, por exemplo, estiveram no palco de diversas discussões sobre a abertura de suas lojas e serviços, sem que fosse levado em conta que a maior parte da população periférica trabalhava nesses setores que eram, ao menos em teoria, essenciais.
O auxílio emergencial, implementado sob muita pressão, se mostrou um paliativo incapaz de manter famílias em casa ou garantir a segurança de saúde de milhares de trabalhadores e só fez crescer o debate sobre uma Renda Mínima fornecida pelo Estado.
Bolsonaro causou aglomeração no fim do ano ao visitar a Praia Grande no Primeiro dia de 2021
Porém, da parte do Governo não há qualquer sinalização de prorrogação do benefício: em gravação divulgada pelo Facebook no dia 30 de dezembro de 2020, o Presidente Bolsonaro disse que não há condições de prorrogar o Auxílio Emergencial por conta do endividamento no combate à pandemia.
“Como eu disse no começo, nós temos que enfrentar, tomar conta dos mais idosos, quem tem comorbidade. Toca a vida” — Presidente Jair Bolsonaro em live no dia 30 de dezembro
Os novos desafios de um novo ano
É janeiro de 2021 e o teatro brasileiro foi agravado com uma nova onda de contágio, principalmente pelo desrespeito das medidas de afastamento social. Festas clandestinas se tornaram bastante comuns em cidades como São Paulo, onde ocorriam em locais privilegiados da cidade — e aqui reside um dos pontos mais sensíveis da questão.
Pandemias e crises sanitárias causadas por vírus são conhecidas há muito tempo, mas se tornaram cada vez mais frequentes pela nova configuração social, econômica, cultural das cidades ao redor do globo.
A população urbana brasileira, por exemplo, saltou de pouco mais de 32 milhões na década de 1960 para mais de 160 milhões de pessoas, segundo Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O Censo de 2020 foi adiado para 2021 justamente por conta da pandemia.
A falta de planejamento urbano, a constante expulsão das classes mais pobres para regiões mais pobres, periféricas e cheias das cidades criaram o cenário ideal para que contágio viral ocorresse em massa entre essa população. A carência econômica, a falta de hospitais, postos de saúde e de saneamento básico agravam ainda mais esse cenário.
A relação entre bairros e a pandemia
Cidades como São Paulo, por exemplo, tem essa diferença nítida em dois bairros atendidos pela mesma linha de trem: Brooklin e Grajaú.
No primeiro, bairro “nobre” da cidade, concentram-se apartamentos de alto padrão, empresas, bares e restaurantes adorados pela elite paulistana. No segundo, bairro periférico da cidade, pouco mais de quinhentas mil pessoas — de maioria negra — se aglomeram em comunidades servidas por um sistema viário deficiente e superlotado para ir trabalhar justamente em regiões como a Vila Olímpia onde desenvolvem funções “baixas” na hierarquia do capital.
Com a superlotação de bairros como o Grajaú, aumentam os problemas relacionados à doenças infecciosas, como o Covid-19.
As novas perspectivas
É inegável que a questão de como a cidade é pensada se mostra cada vez mais pungente e ganhou notoriedade, principalmente no contexto de uma pandemia.
Em São Paulo, propostas urbanas até então consideradas “radicais”, como a desapropriação de terrenos que não cumprem sua função social para ocupação de novos espaços urbanos, foram defendidas por Guilherme Boulos como alternativas à concentração de pessoas, redução de desigualdades sociais e prevenção à surtos, principalmente entre os mais pobres.
Pautas como essas levaram Boulos, morador do Campo Limpo, outra zona periférica da cidade, ao 2º turno da maior metrópole do país e com tradição e mentalidade historicamente elitizada.
Para além do problema de saúde, a pandemia do novo coronavírus tem mostrado que investir em medidas preventivas é mais efetivo e menos custoso que tratá-las.
A vacina é, sim, a iniciativa a curto prazo mais óbvia quando se fala de Covid-19 — ainda que figure uma disputa política lamentável. Mas é a ação contra novos surtos que exige atitudes muito mais contundentes, principalmente na estrutura das cidades por todo território nacional.
O momento agora é de pensar e realizar medidas realmente transformadoras na distribuição territorial das cidades, na especulação imobiliária, na prevenção e contenção de enchentes, na arborização, na distribuição de renda, no acesso ao ensino e à internet e muitos outros assuntos que hoje tornam a cidade não só suscetível a surtos de doenças, mas também mais desumana.